------- a coisa-em-mim -------

desaforismos. fábulas sem moral. egotrips. brainstorms.

sexta-feira, março 30, 2007

síncope

Era um daqueles finais de tarde, em que os anjos brigavam cravando os dentes uns nos outros, e manchavam de vermelho o céu. Daqueles finais de tarde em que os anjos todos exangues, depenados, arfavam nãos cheios de bílis, deixando morrer os inocentes sufocados com os seus próprios perfumes. Eram as tardes em que caíam do ninho os pássaros, em que cadelas comiam os seus filhotes recém-nascidos encharcados de placenta, e simultaneamente à descida do sol, as garrafas de leite caíam impávidas no chão, derramando o líquido branco pelas cozinhas recém asseadas pelas empregadas, que cortavam nos cacos de vidro os seus desamparados pés descalços. Não fugia mesmo da cotidianidade esses finais de tarde, as buzinas dos carros que corriam sem onde, as gravatas corruptoras de humanidades, as bravatas lançadas por uns, com medo e empáfia aos outros. Os homens categorizados em seus humores sangüíneos, fleumáticos, biliosos e melancólicos, misturando-se orgiasticamente nas calçadas, os mesmos das bravatas, mas quem eram os uns e quem eram os outros? Eles que não podiam ser sem predicados. Se acotovelavam na superfície de uma grande esfera redonda, categorizados também em função dos astros que orbitavam uma grande estrela de fogo. Todos os dias jornais e revistas veiculavam seus doze possíveis destinos, que se cruzavam em pequenos parágrafos genéricos, como os remédios baratos que engoliam a seco. Eles que não podiam ser sem regência, não se admitiam notas casuais, e por isso forjavam tonalidades. Eram tristes melodias as deles. Num daqueles finais tétricos de tarde, em que os amantes faziam silêncio, e as cordas dos violinos se arrebentavam, era aí que a gente começava a fazer sentido, chafurdando o corpo nu todo no sangue que escorria do abandono dos anjos, caídos um-a-um daquele imenso céu escarlate.

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