------- a coisa-em-mim -------

desaforismos. fábulas sem moral. egotrips. brainstorms.

terça-feira, junho 09, 2009

a vida.

para Luckaz.


Sentia-se mais antiga que toda forma humana a vestir-lhe a roupa, mais antiga que todo o caminho dos anos, o percurso dos passos pelas ruas em direção a um fim. Era mais velha que as palavras, mais velha que o próprio verbo que se constitui de nome e tempo. Sentia a ancestralidade em sua própria carne quando queimava de febre, quando se cortava ao descascar a fruta, quando sentia o ódio dos dias ou o amor pelo que não é nada. O amor pelo que não é nada seria o amor pelo mundo inteiro, não por este ou aquele outro. Mas ela ainda era cheia de objetos e predileções, caixinhas de música e pedrinhas escolhidas a dedo para os seus. Disso não abriria mão. Jurava encontrar no sangue que irrompia do dedo espetado pela agulha a antiguidade não datada. Não era a busca pela causa, não era a busca pelo deus e nem por pai e nem por mãe. Mas da origem que perdura atrás dos olhos, pelo que escapa à palavra que se contenta em dizer somente um Este ou Aquele, corria e caía e se sujava no chão atrás da origem que seria aquele resto, aquele buraco fundo que ninguém quer ver, a fresta que faz passar aquele fino feixe, o rasgo, o esquecido, o abandonado, o que não serve pra nada. Queria tudo o que escapa aos planos e é negado pela sua potência de não servir pra nada. De não servir a nada que não seja seu próprio movimento. Potência tão temida, contraída, sempre o outro diminuído pelo mesmo. Recuperar o massacrado, dar voz ao que perdeu o direito ao sentido. O surto, desejava. E é assim, e por isso, o nome que me dei, que me contém não identificada – que não é nome segundo, mas o meu nome mais PRÓPRIO.

terça-feira, março 17, 2009

a morte

navegando ali no meio do barco, sozinho no meio do rio, o rio sozinho no meio do mundo
me vi sozinha no meio do barco no rio do mundo sozinho. no momento da sétima margem ouvi aquelas sereias cantando o mais proibido, cantando tudo o que não existe de tanto que É, o que não coube em mim até me ultrapassar, me escorrer pra fora e transbordar do barco. o rio turvo, violento, eu-era-eu-e-era-ele, tão fundo tão abissal. eu que sempre busquei perda de mim, não suportei, mesmo eu valor tão baixo, humanazinha que comete a hybris.
insuportável ser mais água que sangue
olho de águia
insuportável ver o horroroso na beleza
insuportável me ver tão malha fina
[o insuportável era um ponto azul que doía e doía tanto até fazer chorar]
viver em mim minha implosão
viver o caos sob a epiderme do que tange.
me afoguei em infinitas margens, não dava pé era tão fundo! com a corrente fui jogada na areia e sem ar voltei sem mim.
e por um fio, por um pingo, não caí do próprio mundo
que é beira.

quarta-feira, fevereiro 25, 2009

Egon Schiele

quarta-feira, fevereiro 11, 2009

para

se me dissesses "sim" uma só vez
nada econômica eu te diria sete
entoaria o cântico dos cânticos
e romperia o dia morno
finalmente inaugurando
a [bela] Noite:

ressoariam então sete trombetas
virando do avesso o apocalipse
[nos transformando em gênesis].

se com um simples gesto
me abrisse as suas portas
eu entraria também pelas janelas
-líquida-
e sem secar em mim
me infiltraria em cada quente canto:

sem aguardar outros milênios
viraria do avesso o deserto
[nos transformando em mar].

se assentisse então no ato
de toda essa potência contraída
e quebrasse o ovo da espera
estaria ali águia madura
ave saindo,
aquele nó que já não mais desdá.

segunda-feira, fevereiro 02, 2009

quando novo negava o ferro e o fogo
trazia na fronte o pao e a agua,
fazia caber o "si" dentro de.
agora diz que é o puro fora
agua que jorra sem fonte
o beijo que nega a boca
[subssume],
musica
sangue
e punhal.

quinta-feira, julho 31, 2008

releituras

o que sei é do patíbulo esquecido, sinônimo: cadafalso. o esquecimento da pena capital, da condenação, da voz que um dia ecoa em tom de zombaria: c'est finis! a condição de viver, quando não se é eterno; quer dizer: quando se é eterno, simplesmente não se vive, e isso é sem condições. as tristezas travestidas de bonança que ensinam sobre os homens, digo nascer, crescer, reproduzir, morrer. repito do patíbulo esquecido: esses enfiam a morte nos orifícios mais recônditos como um supositório que logo depois se dissolve, digo os já nascidos, crescidos, reproduzidos, mais: dissimulados que fingem não ser os futuros morridos. e a morte-condição é o zumbido no ouvido que incomoda, e os coitados tentam deter, como a dedetização do ambiente contra os vermes, o cheiro de lavanda desconhecendo o solo de cadáveres, os pés que pisam no sangue, a casa ao lado e as flores amarelas do velório; é a consciência nula e torpe do tempo. (henry miller escreveu sobre gostar dos homens que carregam o tempo no sangue, eu admito minha guerra com o tempo e a consciência opaca do duo vida&morte a dançar. oh, claro! isso aqui é auto-referencial!)
o desperdício com cuidados em vão, a placa no metrô: "cuidado! perigo de vida." a frase mais deliciosa e ambígua que li nos últimos tempos, como se a negação do cuidado me jogasse de vez na boca aberta e perigosa da vida. genial. ou talvez eu tenha mesmo me confundido nas minhas operações lógicas e concluído o que me apraz, o que admito não ser difícil (...) mas querem mesmo fingir-não-saber do fim da linha sem saber que assim sacrificam todo o percurso, do mesmo modo como querem negar seus orgãos pulsantes, melados em suas roupas íntimas dentro das igrejas, nos escritórios, nos jantares de família, no calor que aumenta a transpiração e pede água gelada escorrendo na espinha. agora entendo as escusas sobre sexo: é que dizem que todo gozo é uma pequena morte, e não se esqueçam, de morte não querem falar. engraçado como a lista das negações e das vergonhas não cessa, se multiplica, nunca se basta.
(Engraçado como eu, moça delicada, me presto a esse tipo de
denúncia-escrita-emporcalhada numa tarde ensolarada e promissora de verão! Aguardo, pois, a condenação.)

segunda-feira, junho 23, 2008

"tudo morre o seu nome noutro nome."

E essa Filosofia me estendendo suas mãos leves de sofia, tentando me livrar dessa ira intempestiva de Ma-íra? Salvou-me disso-de-mim? No máximo me ensinou a nadar, mas como condição me tirou as bordas. E nadar pra onde? Aprender a nadar sem terra, sem . Intransitivamente.
(...)
Ou uma escuta poética que resgata a palavra desmaiada pelo mundo-coisa, ou resgata o mundo desmaiado na palavra gasta e vã, nesse mundo que se vivo é palavra-lume, na palavra que se cheia é o mundo abrindo... essa escuta num lugar onde a patrulha lógica não vigora nem alcança, território permissivo onde mora o terceiro excluído como um nobre. Em cesuras & dessemelhanças é de transformar céu em chão, sem dó. E retornar depois ao céu sem sol na boca, vertendo e vertendo pra fora de si o que por ser mais próprio e primeiro, lhe parece o mais estranho ---
O sagrado é tão e tanto isso, perpetuamente,
o tempo todo ele escondido como se fosse nada,
ele é na verdade espera, que des-espera num instante
e novamente se dissolve porque a gente não dá conta
do outro lado do espelho
não representado

e é por isso que toda nudez sempre foi,
e sempre será castigada.
A GENTE NÃO SUSTENTA
o (mais) próprio.

domingo, junho 22, 2008

Marc Chagall, O violinista azul

"Se pedem: canta, ele deve transformar-se no som.

E se as mulheres colocam os dedos sobre

a sua boca e dizem que seja como um violino penetrante,

ele não deve ser como o maior violino.

Ele será o único único violino.

Porque nele começará a música dos violinos gerais

e acabará a inovação cantada.

Porque aquele que ama nasce e morre.

Vive nele o fim espalhado da terra. "

Herberto Helder

domingo, junho 15, 2008

metafísica

vives em mim, e só em mim, porque de ti mesmo não sei.
esconde-se de mim em ti como a coisa-em-si que:
________
vives em mim habitando a minha beira,
em mim me nutrindo/me comendo
eu te sustento.
é essa coisa-em-mim,
pois você-em-si-mesmo
é como se nada.

você sem saber de ti em mim,
mas que fora de mim não é mais meu.

quinta-feira, maio 22, 2008

l’autre nom
Início
res:
são paulo, quatro de fevereiro de 2008

e se o arauto esquecesse a ilusão que é comunicar e, enfim, acreditasse que aquilo que ele fala é apenas ruído? e, depois, não tentasse falar qualquer coisa que seja, mas, ao contrário, seguisse na direção inversa e elevasse o ruído a tal ponto que já não restasse forma alguma, palavra alguma, mas somente uma força, uma intensidade? de fato, ele não usaria a voz ou o papel, já não usaria palavras, porque seu objetivo agora seria, incessantemente, dar nome ao sem-nome. ele criaria novos instrumentos, ou renovaria aqueles que já existem, para nomear o a-nônimo com seu corpo ligado em um pedal de overdrive. as orelhas rudes diriam: ‘eu conheço esse idioma…’, obrigando o arauto a regressar àquela linguagem (como quem desce a montanha ou regressa à caverna) para explicar que ele entrou pelo lado errado do som. então, novamente, o povo perguntaria: ‘o que é que diz essa mensagem que não utiliza as palavras do nosso idioma? o que diz essa mensagem que nada comunica?’. o arauto palavraria pela última vez: ‘mesmo que, por vezes, se utilize de palavras, a música abarca aquilo que não corresponde a nenhuma palavra…’.

daqui: http://lautrenom.wordpress.com/

domingo, maio 18, 2008

boneca russa

no escuro,
ela errática
embaralhando as pernas
de moça tão torpe
e velha
de tantas batalhas
que guarda na navalha
o pulso
na lágrima
o olho
e no riso guarda
a boca
que é guardada na palavra,
que revela
escondendo tudo.

domingo, abril 27, 2008

"Nem amigo, nem amante, nem sexo ou comuna hão-de abrigar-me o que nem já a escrita – meus fantasmas calados à ilharga do que vos não escrevo a ninguém, todas as histórias de invenção da palavra verá emudecidas e ainda bem. Não há nada mais para expor. É o tempo do não que nem mesmo qualquer mau humor conjunto ou obra boa pode descrescer. É o lugar do avesso e me descoso de tudo nele. É a colheita do joio, ver uma a uma cortadas e trilhadas em molhe as espigas do cereal que imitei, sem nunca ter amado a metáfora, sem provavelmente ter amado nunca o que quer que fosse senão a esquiva, o esquivado de tudo, a entrelinha, a firmemente sinuosa linha, a escorreita água de aço da verdadeira vida, a por debaixo, a que ainda não, que a outra põe ao rubro, sendo a absurda metáfora só o que tão real parece e é dito, todos vivendo com o bom anjo da convicção escarranchado à ombreira do ombro, à ilharga dos gestos, à beira da fala."

Novas cartas portuguesas

segunda-feira, abril 21, 2008

Malevitch, Quadrado branco sobre fundo branco, 1918

segunda-feira, abril 07, 2008

"Não há nada que um humor inteligente não possa
resolver com uma gargalhada, nem mesmo o Nada."


Armand Petitjean

sexta-feira, abril 04, 2008


Então eu saltaria segurando
aquela corda
presa na superfície fluida
do espaço:
Não sabendo se entendo
ou não entendo,
mas então desentendendo:
"carece é de ter coragem."
Não sabendo se desejo
ou não desejo,
então improvisadamente:
carece sair do vórtice.
São sete sustos contidos
nesse salto,
e não sabendo se certo
ou errado,
enquanto isso me ancoro
num propósito:
sempre despropositado.

quinta-feira, março 27, 2008

reaprendendo.

e se eu disser da sensação de abandono que sinto de céu e terra,
desse deus que é um luxo o qual eu não mereço,
ele que em mim não crê enquanto eu não creio nos Homens.
e se eu disser de todo esse meu riso,
desse riso nervoso que pressente o nada,
um riso que é máscara rindo de si mesma
e de ti, tão indigente, que igualmente é nada.
nesse baile de máscaras procuro o impossível da vida desnudada,
e se a encontro, é como encontrar não,
é como encontrar ______.

sexta-feira, março 07, 2008

queda

morder a maçã me exige a coragem,
aquela perpétua coragem
de ferir os joelhos delicados
e provar todos os males
que é a queda violenta
nesse mundo.

então
novamente faminta
num apelo absoluto
depois de caída e saciada
sei que implorarei
um pedaço de mundo pra morder.

assim
tendo mordido mundo
e mastigado a pujança
provado do veneno e da tolice
dessa presunçosa dança
de bilhões de pés descompassados,

- cair inda pra onde?

sexta-feira, fevereiro 01, 2008

" Despedir dá febre."

Guimarães Rosa

quarta-feira, janeiro 23, 2008

deixar ser

o que se espera
quando se espera
nunca é o mesmo
quando encontrado.
o que se encontra
quando já nao
se espera
é livre,
e precisamente,
ele mesmo.

sexta-feira, dezembro 14, 2007


começa com o vento
.

.
vai soprando nos cabelos, ele levanta as saias, o vento bate as portas, o vento apaga as velas, veleja nas velas dos barcos, o vento cai a folha, move
.
e se então um coração vulnerável ao vento, como se não pertencesse a um corpo seguro, como se não houvessem fios - essas veias frágeis onde corre o sangue nosso - então se esse coração fosse como um pássaro sem asas, solto flutuante à mercê do vento que hoje é intenso e o empurra à distâncias e pra fora do mundo, e de tão forte com o vento o coração grita e grita porque essa é a única expressão possível, que linguagem tem um coração na ventania senão o estrondo? e sendo esse tal pássaro sem asas e amanhã o vento aquela brisa leve, o pássaro observa e respira profundamente porque é sereno porque é sem alarde e ele consegue cantar sem o grito, ele consegue cantar porque tem compasso. o coração que é o pássaro bate sem a síncope, o coração se torna complacente, e a lucidez. e ainda se no outro dia o vento for frio, daqueles que matam os homens que caem bêbados nas ruas da rússia, e se esse pássaro desabrigado estiver lá, ele para de cantar e de bater, nem sequer grita de dor porque frio é anestésico e as penas congeladas param esse coração tornado gelo e tão duro. a sua sorte é se uma mão dentro do vento, agarra e esquenta na sua mão de concha, guarda lá dentro até que o vento gelado passe, e ele pia baixinho, aos poucos reage. e de repente quando o pássaro se vê sem vento leste nem oeste, que é o mesmo que se ver sem norte, porque não tem vento, só o seco o árido, o ar parado que não cai a folha, e o coração abafado num deserto que é a própria morte, a sede. o pássaro sem asas e sem vento - o coração paralítico sem cadeira nem rodas, é a vontade a vida o espírito que quer imobilizado o que não pode.
.
então sem asas e sem vento o coração volta pro corpo e se reconecta às veias por onde passa o sangue nosso. sem asas e sem vento o pássaro volta a cantar dentro do peito, crendo estar seguro, crendo ser mediado por uma razão,

[mas que razão?] <------ .

& sem saber que lá nuvens se chocam, anunciando tempestade

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CALMA, CALMA, também tudo não é assim escuridão e morte. Calma. Não é assim? Uma vez um menininho foi colher crisântemos perto da fonte numa manhã de sol. Crisântemos? É, esses polpudos amarelos. Perto da fonte havia um rio escuro, dentro do rio havia um bicho medonho. Aí o menininho viu um crisântemo partido, falou ai, o pobrezinho está se quebrando todo, ai caiu dentro da fonte, ai vai andando pro rio, ai ai ai caiu no rio, eu vou rezar, ele vem até a margem, aí eu pego ele. Acontece que o bicho medonho estava espiando e pensou oi, o menininho vai pegar o crisântemo, oi que bom vai cair dentro da fonte, oi ainda não caiu, oi vem andando pela margem do rio, oi que bom bom vou matar a minha fome, oi é agora, eu vou rezar e o menininho vem pra minha boca. Oi veio. Mastigo, mastigo. Mas pensa, se você é o bicho medonho, você só tem que esperar menininhos nas margens do teu rio e devorá-los, se você é o crisântemo polpudo e amarelo, você só pode esperar ser colhido, se você é o menininho, você tem que ir sempre à procura do crisântemo e correr o risco. De ser devorado. Oi ai. Não há salvação.
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Hilda Hilst, Fluxo -Floema

sábado, dezembro 08, 2007

- é que há uma diferença essencial entre a mancha e a sujeira
- a sujeira sai, se redime na água; a mancha não
- mácula
- não há nada que

quarta-feira, novembro 28, 2007

uma chave.

noite passada quando não rompi os céus
quando plantei meu corpo devastado
no lençol a minha terra improdutiva
e assumi o soluço
a vertigem
a semente do desamparo,
pensei na solidão esquizofrênica
que é inventar nomes outros
pro que já tem nome.
pensei no que é ser outra
quando a mesma já não basta
ou não convém
ser a outra [de si] quando ela parte
é ausência positivada
fechei os olhos e sete vezes
respirei
pensando assim
eu sou ausência, o eco de algo fugidio
quase o tempo todo em mim.

sexta-feira, novembro 23, 2007

variações sobre um tema de sístole e diástole.

i) primeiro ela veio
com o silêncio
carregando nas mãos
uma flor
caída da árvore -
despetalada.

ii) n'outro dia foi a vez
do vento
que no rosto
feito boca
como um sopro
na queda da flor
naturalmente
se desfêz.

iii) depois veio com estrelas
emaranhadas nos cabelos
com o brilho
luzindo
a clareira
a queimadura
de fogo
bem na nuca.

iv) a menina trapaceava
trouxe um verso
pronto
pra ninguém
e recitava e entoava
o cântico dos cânticos
pro ouvido
surdo
que era igual
dentro da pedra
bruta.

v) atrás do coração
onde não havia tom
como uma
sala de concerto sem
público ou palmas
um recital
ofertado
pras cadeiras
vazias.

vi) o tamanho do anel
que passou de mão
em mão
é
[segredo] -
o que
não serviu no dedo
como a palavra
na coisa
[é sagrado].

vii) e
do anel
nasceu uma mão
uma
pequena mão
delicada -
de punho fechado
o anel preso,
encerrado.

viii) a mão
que se abriu
e
não se recolheu
depois de
acenada.

ix) como um riso
abriu as mãos
e
a flor com
os espinhos
mesmo que fenecida,
mesmo
despetalada.

quarta-feira, novembro 21, 2007

prosa

nem paris, texas. nem maracangalha. nem passárgada. nem macondo (na verdade, quase) nem lugar nenhum que mora num livro ou num filme. nenhum personagem que se mata no final ou mata um árabe. nenhum personagem que sai pelo deserto e não volta, que entra no teatro mágico e descobre algum segredo, muito menos alguma carlota que é virgem-maria, nem - graças a alguma força superior! - nenhum werther, aquele que não passa de um barango inflamado.
.
é assim uma trivialidade, uma pedra no meio do caminho, uma rosa é uma rosa é uma rosa, é na verdade uma pequenez que vez ou outra inventa mistérios e esfinges pra se acreditar maior.

joker.

quando pequeno eu era um dos meninos mais sérios e obedientes da paróquia, mas o meu maior segredo, que nunca ousei revelar, é que eu sempre sonhei em mastigar a hóstia na missa. tudo o que eu mais queria era sentir o corpo de cristo triturado pelos meus dentes, e que o sangue escorresse da minha boca na frente de toda aquela gente beata. eu queria sentir o gosto da carne dele, a textura e a maciez de um corpo sagrado e divino, mas o máximo que o padre permitia era que ele ficasse grudado no céu da nossa boca até se dissolver por completo. um céu nem um pouco divino, o dessa minha boca suja. muitas vezes eu fazia vômito esperando aquela massa se desfazer, e a região do céu da minha boca nesse momento se transformava num inferno.

todos os domingos eu dizia pra mim mesmo "de hoje não passa", mas uma interdição fortíssima me mobilizava, e não me deixava sequer encostar de leve os dentes naquele círculo branco.

o tempo foi passando, e com ele fui deixando acumular na periferia das minhas vontades, muitas dessas coisas secretas que não cheguei a concretizar.

desde os meus 12 anos deixei de frequentar toda e qualquer igreja. foi no mesmo ano em que mamãe morreu, e meu hábito dominical passou então a ser matar passarinhos com a forquilha. ficava eu sentado na pedra do jardim, absorto em algum pouso, calculando para que fosse fatal. foi assim que me distanciei daqueles hábitos de coroinha, e a auréola que me tinha sido ofertada, foi rapidamente se apagando; quando dei por mim, estava ateízado. simplesmente ter deixado de cumprir as obrigações protocolares de menino reto e cristão, deixou a minha crença em deus morrer de inanição. ateizei-me definitivamente aos 16.

já não apelava mais pra providência alguma. "o graças a deus" transformou-se em "graças a ateus", as folhas de seda da bíblia que empoeirava na estante, estavam todas mutiladas para uso pessoal. seguia a vida sem apelar pras coisas invisíveis e celestes. das coisas invisíveis, as únicas que me interessavam eram os conceitos. e a prova da inexistência de deus é que me tornei um acadêmico. não fui salvo, redimido, iluminado, nem coisa que o valha.

mas numa daquelas noites de insônia onde nada faz efeito, e os olhos se afundam cada vez mais no rosto, e você não consegue definitivamente se desligar, eu tive um insight enquanto enfiava a cabeça no buraco entre a cama e a parede. descobri que ainda acreditava em deus. ele ainda estava lá, no fundo de todas as minhas expectativas; eu ficava esperando das minhas ações alguma reação mais fantástica, numa espécie de dúvida moral, ficava esperando algum castigo ou prêmio, mas de quem? agora eu descobri que só poderia ser dessa criatura, ou melhor, desse criador. descobri que acreditava em deus. mas num deus sarcástico, sim, eu sempre tive a impressão de ser a piada interna de deus. uma private joke. e ele esperava a maior de todas as minhas convicções pra me destinar exatamente o contrário. ele sacava o maior dos meus medos e tudo o que eu mais abominava no mundo, e me presenteava com elas. não ousarei entrar em detalhes, de modo que isso é universalmente detectável, a perversão dEle.
Henry Miller já disse que o mundo é um grande peido. Eu diria que é uma grande piada cósmica, o que não é novidade alguma, o clichê dos clichês.
a ironia divina é mesmo implacável,
e eu estou verdadeiramente fodido.

Acordei com o pescoço completamente duro e dolorido. É que acabei adormecendo, de fato, com a cabeça enfiada entre o buraco da cama e a parede.
a ironia divina é mesmo implacável,
e eu estou verdadeiramente fodido.
(repeat ad infinitum)

quarta-feira, novembro 07, 2007

frag_____to

[On]
Estou tentando abrir um túnel na rocha bruta. Eu sei, sei que é penoso. Mas qual é a busca que em si mesma não traga sua pena? *

[On]
Confesso que nunca entendi o que se faz por aí: nos ônibus, nos bancos, nas filas, nas salas. Confesso que sempre fingi saber, que sempre fingi todo o meu interesse. O que se vê por aí correndo no céu e nadando nos ares é sempre aquela frustrante sensação de se afogar, mesmo no alto da mais alta montanha.

[On]
Nas vitrines que me vêem passar, eu retribuo o olhar e miro a efemeridade ambulante que sou, a transitar pelas ruas, ruelas e alamedas de uma metrópole caduca considerada moderna. Aqui as pessoas chupam o cão que o diabo amassou pela falta mesma de manga e de pão. Estes milhões de pessoas que não têm necessidade alguma de se conhecer, ostentam de modo tão semelhante a educação o ofício a velhice o soslaio...

[Off ]
Na escada, olha pr'os duros pés, os sapatos sujos de lama. Levanta-se e propositalmente suja de um extremo a outro, o corredor. O olhar, sujo de sono e torpor, é ofertado tão-somente ao chão. Mas e ela? A gana. Aquela vontade, não alheia e muito menos paralela, mas perpendicular, a rasgar tempos e espaços. Contaminada e suja pelo vermelho vivo da verdade - cor de coração - um foguete é ofertado ao céu em potência de explodir estrelas.

[On]
Estou tentando abrir um túnel na rocha bruta. Eu sei, sei que é penoso. Mas qual é a busca que em si mesma não traga sua pena?

[Off]
Bem sabia, experimentaria em fim em pleno a dor do mundo. Mas também seria por vezes tomada de um êxtase de prazer puro e legítimo que ela mal podia adivinhar. Aliás já estava adivinhando porque se sentiu sorrindo e também sentiu uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais e incontrolável.*

[On]
Não quero a esperança, aquela "puta do vestido verde" que acena, mas não se despe e muito menos de despede. Mas sim a fita vermelha no pescoço de um jovem despido que me lance às gargalhadas da janela de algum sétimo andar. Vê! Expus enfim a jugular. O rosto ao sopro do vento e a cara à tapa.

[On]
Estou tentando abrir um túnel na rocha bruta. Eu sei, sei que é penoso. Mas qual é a busca que em si mesma não traga sua pena?

[On]
Uma dança sobre um chão de madeira lustrado imprimindo os trancos. Sabe-se lá onde vai dar, mas que não seja Dentro, aquilo que não é espaço, não é concreto, é puro inferno num abstratoabstrato. Uma dança sem o tempo que são os ponteiros flechas cravados no peito, sem aquela linha [do tempo mecânico] que ao final é de fazer a forca. Olhar pra trás e ver só uma música, que eu compus em compasso ternário, interpretei, e dancei a passos firmes, ainda que em descompasso com esse mundo binário. Ser nota, ser pausa, voltar a ser nota. A repetição nunca é uma repetição. Em música, toda repetição é diferença. Aquela música, listen to my HeartBeat: e ele todo em hemorragia.

[On]
Estou tentando abrir um túnel na rocha bruta. Eu sei, sei que é penoso. Mas qual é a busca que em si mesma não traga sua pena?

[* trecho da Clarice L.]

domingo, outubro 21, 2007

eu gritava aqui do imenso mas o grito que me abria a garganta e me fulminava, no final não passava de um ruído mínimo, desfeito. então eu resolvi sair do imenso e ir pro menor, casulo/casca/redoma onde só cabia eu. então eu gritava aqui do menor mas o grito que me abria a garganta e me fulminava voltava pra dentro porque o ouvido era só meu. então eu resolvi sair do menor e ir lá pro meio, pátio/ponte/rua, onde havia as gentes com a indistinção e eu não entendia nada, aqueles ruídos, a turba cruzando os gritos e então eu resolvi parar de gritar, mas então de repente era como se fazer silêncio fosse conter o mundo na garganta, e então eu resolvi gritar mesmo que ninharia mesmo sem ouvidos, mesmo que o apelo fosse em vão no meio do caos. mas tem dia que não abre, a garganta, os ouvidos, nem o mundo abre, ele se recolhe se esconde e ninguém responde e ninguém vê.

e é como se eu gritasse novamente no imenso
como se não houvesse grito
nem eu
e
nem você

só o eco do nada
[que habita a casa do não
y del dolor]

domingo, outubro 14, 2007

sublimação.


Faça de conta que os cortes não passam de pinturas feitas a tinta num dia de festa onde todos só queriam assustar uns aos outros com esses efeitos vermelhos. Faça de conta que esses cortes que denunciam a sua hemofilia não atraem vampiros mas somente borboletas que se lambuzam de néctar, na primavera, verão, outono, inverno...e primavera. Tente esquecer então que não há linha cirúrgica, nem linha-de-pensamento, que não há linha alguma que permita um ponto que promova a união dos tecidos - do corpo, que não é de seda. Faça de conta que arder o corte com a água, arder o corte com a chuva é como sorver um ácido que cauteriza a sua fraqueza, e extirpa num só golpe o teu núcleo necrosado que nunca te faz presente. Ainda de olhos bem abertos a tudo o que acontece externamente, esqueça que esses cortes foram feitos pela baixeza e pela perfídia e eleve-se em pensamento crendo ser estes, estigmas crísticos. Ainda sem embaraço, faça de conta que o sangue que escorre corpo abaixo, em sua roupa limpa & branca retorna à terra, num movimento natural que nutre o solo e torna fértil. Mais uma vez, com os dedos, penetre os locais dos cortes e faça deles (dos dedos) instrumentos de pintura: um painel na parede da sala, um desenho em mesa de bar, um escrito qualquer num papel qualquer. Passe a chamar os cortes de sulcos, pregas, fendas e esqueça das células, da profilaxia, dos curativos. Trate-os como novos orgãos dos sentidos que recebem estímulos. Acostuma-te à incapacidade de supurar & trate de manchar cada canto escuro a que te convidam e permitem entrada.

quarta-feira, outubro 03, 2007

cronos

e se eu dissesse do tempo, do quanto ele me pesa os ombros como o céu em Atlas, do quanto ele me rasga as mãos e faz de cada passo meu um contratempo. que é como catar as entrelinhas nas linhas, flores abstratas em um jardim de ossos e concreto [em ruínas], é como desafiar. se eu dissesse do tempo como o sinto, quando vejo seu estrago, tempo é fogo que transmuta e queima a minha casa. não é nada senão isso que chamamos deus, onipresença e onipotência absoluta que devasta. ele passa e não sabe pra onde, confundindo os passos, empurrando, empunhando o sopro. tempo é vento, que carrega o mundo, que apaga seu próprio fogo, é o próprio deus se matando e se nascendo. talvez devesse aceitar o tempo, mas se eu dissesse do tempo, do quanto ele é impiedoso diante da espera, eu abro as mãos libertando-o e ele insiste insiste - me contrariando, em ficar.

a essência do tempo é ser assim, o meu contrário.

segunda-feira, outubro 01, 2007

toda repetição é uma repetição.

.poema.magro.

hoje
se eu fosse um
pássaro
estaria
sem penas
assim como uma flor
se desfaz
sem pétalas
hoje
eu depus as armas
perdi as defesas
esqueci
em casa
minha dureza tola
o ataque
cortei as garras
à faca
lavei as pinturas
de guerra
hoje
a rigidez dos músculos
dá lugar aos ossos
esquálidos
porosos
a música, em disco
arranhado
não cuspiria em nada
mas me sentaria
e encostaria
o corpo
em qualquer apoio
a cabeça
depositada
no colo - do outro
por isso
não me olhes torto
(por favor, nem me olhes no olho!)
pois estou
quase
a quebrar.

quinta-feira, setembro 06, 2007

Céu
..
Era preciso começar daí: céu.
Janela sem encosto, sem moldura, sem vidraça.
Abertura e nada mais, porém muito bem aberta.
Não preciso aguardar a noite amena:
nem levantar a cabeça
para perscrutar o céu.
Tenho céu atrás de mim, sob as mãos
e debaixo das pálpebras.
Estou enredada de céu
e isto me exalta.
Nem as montanhas mais altas
Estão mais próximas do céu
que os vales mais profundos.
Não há mais céu num lugar
do que em outro.
A nuvem está atada ao céu
indiferente como o túmulo.
A toupeira é tão feliz
quanto a coruja que abre as asas.
O objeto que cai no precipício
cai do céu no céu.
Partes poeirentas, líquidas, montanhosas,
passageiras e queimadas do céu, migalhas do céu,
brisas de céu e montes.
O céu é onipresente
até nas trevas sob a pele.
Devoro o céu, rejeito o céu.
Estou com armadilhas na armadilha,
com o habitante instalado,
com o abraço abraçado,
com a pergunta presente na resposta.
A divisão entre céu e terra
não foi pensada de forma adequada
a respeito desta unidade.
Permite até que se sobreviva
no endereço mais exato,
que pode ser achado mais depressa
se me procurarem.
Os meus sinais característicos são
o arrebatamento e o desespero.
.
.
Wislawa Szymborka
.
Nascida em 1923 em Bnin, uma cidadezinha do oeste da Polônia.

terça-feira, agosto 14, 2007

juan.

talvez porque desde o início me des-parti, me juntei, reuni os timbres em uníssono com as tantas vozes minhas. talvez porque tomei distância, e não me vi de cima, me vi comigo EM CIMA, olhando lá longe o espaço vazio que pausei. não me vi acenando ébria pra mim sóbria como eu-ela-faz-faço sempre. eu que dessa vez me dissolvi em mim e me esqueci, estive mais e melhor com o outro, que brilhou e cresceu tanto, e tão mais que todas as outras vezes. e esse outro, que não o outro de mim, mas que por fora e de bem longe veio, descosturou ponto-por-ponto do meu vestido de palavras, me deixando na nudez de corpo e de silêncio, enquanto uma língua de carne calava com sua altivez a língua estranha de dois estrangeiros. uma língua que roçava outra língua, e que gerava a linguagem comum na saliva, era como engolir as palavras do outro e de pronto entender sem verbalizar. e agora de volta à "dramática da língua portuguesa", à exigência cotidiana de sentido, eu sem tocar a referência que desejo, ainda guardo na boca o gosto do sem-nome. quero de novo catar as palavras cadentes desse céu distante, queimando as mãos num peito-aberto-incandescente, e assim habitar sua constelação.

terça-feira, julho 10, 2007

... e nevou inesperadamente.

segunda-feira, julho 02, 2007

a arte da fuga

Estou-me a ir. Em busca dos pêssegos suculentos, das milongas e dos tangos passionais, do frio de fora pra aplacar o de dentro [drama? oh mas é claro!]. Fui sobretudo me nutrir. Pode ser que eu nem volte e fique mesmo por lá. Pode acontecer por exemplo uma admissão como violinista numa orquestra de tango bufão. Pode ser que eu fique por ali dando aulas particulares da língua do P. Pode ser que eu encontre alguns neo-patafísicos e então montaremos um instituto na Patagônia, e então nos deteremos às exceções de todas as regras do mundo, ad aeternum. Pode ser que eu vire uma Madre de Plaza de Mayo, chorando a morte da minha filha não-nascida, a Olívia. Posso também viver de poesia marginal ou virar Lola, la mendiga, la hija de la basura: Me llamo Lola, estoy sóla, ¿donde están los cubanos? Posso me casar com um Argentino e ter 7 filhos chamados Pablito. Pode ser que eu me case com uma Argentina, e tenhamos 7 gatas lésbicas chamadas Safo. Pode ser que eu enlouqueça de vez, e fique pulando amarelinha imaginária até os pés se arrebentarem, em frente à casa onde nasceu o Júlio.
Besos, corazón.
Mas pode ser mesmo que eu volte, trazendo 7 alfajores na mala, um bandoneón no peito, e "el codigo oculto de esa mirada".

M.