------- a coisa-em-mim -------

desaforismos. fábulas sem moral. egotrips. brainstorms.

sexta-feira, dezembro 14, 2007


começa com o vento
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vai soprando nos cabelos, ele levanta as saias, o vento bate as portas, o vento apaga as velas, veleja nas velas dos barcos, o vento cai a folha, move
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e se então um coração vulnerável ao vento, como se não pertencesse a um corpo seguro, como se não houvessem fios - essas veias frágeis onde corre o sangue nosso - então se esse coração fosse como um pássaro sem asas, solto flutuante à mercê do vento que hoje é intenso e o empurra à distâncias e pra fora do mundo, e de tão forte com o vento o coração grita e grita porque essa é a única expressão possível, que linguagem tem um coração na ventania senão o estrondo? e sendo esse tal pássaro sem asas e amanhã o vento aquela brisa leve, o pássaro observa e respira profundamente porque é sereno porque é sem alarde e ele consegue cantar sem o grito, ele consegue cantar porque tem compasso. o coração que é o pássaro bate sem a síncope, o coração se torna complacente, e a lucidez. e ainda se no outro dia o vento for frio, daqueles que matam os homens que caem bêbados nas ruas da rússia, e se esse pássaro desabrigado estiver lá, ele para de cantar e de bater, nem sequer grita de dor porque frio é anestésico e as penas congeladas param esse coração tornado gelo e tão duro. a sua sorte é se uma mão dentro do vento, agarra e esquenta na sua mão de concha, guarda lá dentro até que o vento gelado passe, e ele pia baixinho, aos poucos reage. e de repente quando o pássaro se vê sem vento leste nem oeste, que é o mesmo que se ver sem norte, porque não tem vento, só o seco o árido, o ar parado que não cai a folha, e o coração abafado num deserto que é a própria morte, a sede. o pássaro sem asas e sem vento - o coração paralítico sem cadeira nem rodas, é a vontade a vida o espírito que quer imobilizado o que não pode.
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então sem asas e sem vento o coração volta pro corpo e se reconecta às veias por onde passa o sangue nosso. sem asas e sem vento o pássaro volta a cantar dentro do peito, crendo estar seguro, crendo ser mediado por uma razão,

[mas que razão?] <------ .

& sem saber que lá nuvens se chocam, anunciando tempestade

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CALMA, CALMA, também tudo não é assim escuridão e morte. Calma. Não é assim? Uma vez um menininho foi colher crisântemos perto da fonte numa manhã de sol. Crisântemos? É, esses polpudos amarelos. Perto da fonte havia um rio escuro, dentro do rio havia um bicho medonho. Aí o menininho viu um crisântemo partido, falou ai, o pobrezinho está se quebrando todo, ai caiu dentro da fonte, ai vai andando pro rio, ai ai ai caiu no rio, eu vou rezar, ele vem até a margem, aí eu pego ele. Acontece que o bicho medonho estava espiando e pensou oi, o menininho vai pegar o crisântemo, oi que bom vai cair dentro da fonte, oi ainda não caiu, oi vem andando pela margem do rio, oi que bom bom vou matar a minha fome, oi é agora, eu vou rezar e o menininho vem pra minha boca. Oi veio. Mastigo, mastigo. Mas pensa, se você é o bicho medonho, você só tem que esperar menininhos nas margens do teu rio e devorá-los, se você é o crisântemo polpudo e amarelo, você só pode esperar ser colhido, se você é o menininho, você tem que ir sempre à procura do crisântemo e correr o risco. De ser devorado. Oi ai. Não há salvação.
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Hilda Hilst, Fluxo -Floema

sábado, dezembro 08, 2007

- é que há uma diferença essencial entre a mancha e a sujeira
- a sujeira sai, se redime na água; a mancha não
- mácula
- não há nada que