------- a coisa-em-mim -------

desaforismos. fábulas sem moral. egotrips. brainstorms.

segunda-feira, abril 30, 2007

memórias

Aos cabelos brancos de mamãe, atribuo toda a vida dissoluta de papai. Os cabelos brancos de papai foram surgindo à medida do meu crescimento anual em centímetros, e a cada vez que eu piscava os olhos, seus cabelos se enchiam alvos. E eu também apertava esses mesmos olhos daquele jeito todo cheio de culpa, perdoa-me a superação, essa pletora cega que me deixa assim-a-cada-dia-sempre-tão maior que você. Perdoa-me os pêlos que crescem, esse líquido que me escorre e corre por entre as pernas abertas em posição de eros. A carne trêmula, a boca suja que não me serve mais só pra comer ou falar. Perdoa-me saber o que você não sabe. Perdoa-me o seu necessário assassinato. Até o dia em que vesti seu terno e sua gravata esquecidos no armário, e olhando no espelho me senti um homem corrupto. Hoje seus cabelos se encontram prateados, e eu nem peço perdão.
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Hoje atribuo aos cabelos brancos de mamãe, além da vida dissoluta de papai, a sua própria resignação. Aos seus cabelos brancos segue-se o olhar tristemente acostumado, um humor mórbido e ensimesmado. Esses cabelos brancos se multiplicam ao redor de sua cabeça, e eu espero pelo dia em que crescendo até sua cintura, as minhas mãos finas os escovem e façam com eles uma linda e grande trança. E de mim, uma tecelã que cante afinadamente uma canção bonita. Chegará também o dia em que papai e mamãe serão só cabelos, pois estes continuam a crescer mesmo depois da morte, como as unhas. E quanto à mim, que serei uma mulher de coque orgânico e despenteado, temo pelo dia em que sentada lendo algum filósofo estóico, ou mesmo durante o sono, diminua-me o tamanho da vontade, a pletora recolhida pelo tempo. Temo pelo dia em que inevitavelmente vestirei a gravata de papai, resignada e só, como o silêncio brando da cadeira de balanço de mamãe.

fragmentos de um discurso.

i) Passarinhos verdes? Oh mas é claro que não! São aqueles corvos e urubus que acreditando ser eu um espantalho, ficam a me bicar a cabeça. Essas delicadas aves de filmes de terror trash reafirmando a minha sozinhês no meio desse milharal a que chamam cidade e suas gentes!

ii) Mas logo eu, uma pessoa tão legal! Como você pode fazer isso com você? Vem cá, vem, não fica assim. É difícil, mas você vai superar! És de fato um tolo, mas quem não é?
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iii) Óculos não bastam. Os olhos deverão ser blindados e protegidos por cercas elétricas para uma maior segurança. Todos sabem muito bem que a entrada primeira é pelos olhos. Pois bem, os meus agora estão protegidos 24 horas. O alarme será um grito agudo e imenso nos ouvidos do impostor, um grito daqueles capazes de arrepiar os cabelos de deus.

iv) Exceção será aberta se e somente se encontrarmos alguém dotado de uma apurada sensibilidade shakesperiana, sendo capaz de fazer seguir a seguinte cena:
EU:
"Ei-lo! Alto lá! Mostrai quem sois!"
A pessoa se decente for, responderá sem hesitar: "Amigo do rei".
A partir daí, quem sabe um talvez.

v) No momento do Não, o que sempre acreditamos ser um câncer de cotovelo, 7 dias depois não passa de um tumorzinho benigno, capaz de ser extirpado com um simples cortador de unha, enquanto cortamos as unhas dos pés e refletimos sobre os mistérios da patafísica.

vi) É preciso ter vivência. Depois que enfiaram a faca e rodaram 77 vezes, seu hipocampo sentimental apaga os arquivos de áudio, de vídeo, de tato. Por sua vez, o hipocampo sentimental traz à tona memórias necessárias, daquelas que denigrem a imagem do criminoso. As gargalhadas são instantâneas. Você aproveita e diz, ainda no discurso shakesperiano: "Há algo de podre no reino da Dinamarca!"

vii) Deixar marcas que vão do roxo ao vermelho em peles brancas, esfregar um rosto bonito em uma parede de chapisco, abrir a boca de alguém em um meio-fio e pisar com força em sua cabeça - fabular ideais de violência e entrever coisas belas sendo destruídas, é altamente recomendável quando o corpo dá sinais de ganância e os pensamentos se enlanguescem.

viii) E cantar alto uma música do Morphine, pensando no Sandman que morreu de um ataque fulminante num palco da Itália sem ter encontrado a "Cure for Pain", aquele sax gritando desesperado a errância! E cantar enquanto tiro o pó dos livros da estante: Oh I'm free now/Free to look out the window/Free to live my story/Free to sing along Oh (x4)
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ix) Amor, amar, amante, amado, e todas as variações performativas dessa patologia, é coisa para a-ma-do-res.
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x) É preciso novamente olhar nos olhos de um búfalo.

domingo, abril 29, 2007

individuações.

Tereza era. Com uma velha máquina fotográfica, andava por todas as ruas, ruelas e alamedas em busca de imagens de sapatos pendurados pelos cadarços nos fios elétricos da cidade.
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Elza seria. Fazia apostas com a repetição e com o acaso: se aquela mosca entrar de novo pela janela, jamais me casarei. se dentro de 3 minutos um moço de casaco azul não passar por mim, entrarei para o convento. se uma porta bater na hora do almoço, faço regime.
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Manoel fazia. Todo final de semana ia à rodoviária e sentava-se no terceiro banco da terceira fila da plataforma C, carregando consigo uma viola que nunca era tocada, juntamente com um pacote que era aberto e: olhado como quem garante, e novamente fechado como que assente.
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Dinah esteve. Andava sempre de salto-alto e meia-fina nas ruas de paralelepípedos, gostava de viver fortes emoções, e de ser socorrida por estranhos que demonstravam preocupação excessiva com os seus joelhos, e a meia rasgada no meio das pernas finíssimas de saracura.
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Alberto estava. Fazia a digestão do almoço dando 5 voltas no quarteirão de casa, acompanhado do vizinho que só aguentava 3 e ficava esperando no ponto de ônibus ao lado dos estudantes. Fazia a digestão do jantar dando voltas na praça próxima de casa, assoviando sempre o Bolero de Ravel e jogando alpiste às pombas e rolinhas.
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José é. Cego, mas insistia em dizer da feiúra das pessoas e da falta de gosto em combinar as cores e texturas. Casado com Telma, surda de nascença e consequentemente muda. O casal se comunicava através de Clóvis, mediador contratado, que sabia braille, linguagem de sinais e Esperanto.
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Sônia era-aí. Sofria de insônia e passava madrugadas inteiras costurando e descosturando retalhos numa colcha que só ficaria pronta quando mudasse de nome e se tornasse Neuza.
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Clara não era. Ela que sonhava com viagens de navio intercontinentais e viagens de avião interestaduais, nada fazia. Não era agente nem paciente, professora nem estudante, patroa nem proletária. Clara acaba de receber uma carta sem remetente, com recortes de jornal que diziam ser ela um "néant, uma qualquerzinha, tão inútil e desnecessária quanto uma fábula sem moral."

quarta-feira, abril 25, 2007

"Acho melhor não."

Bartleby

segunda-feira, abril 23, 2007

oráculo.

Era ele lá no fundo da taberna, debruçado sobre uma dessas mesas pesadas de madeira maciça que de tanto, pareciam enraizadas ao chão. Guardanapos amassados jaziam sobre a mesa, e neles uns rabiscos feitos à caneta preta, palavras como "orquestra", "pachorra", "doidivanas" e "condoído" compunham o conteúdo do que ele dizia suas vaticinações. Frenético a rabiscar feito um médium em contato com forças ocultas; e caso realmente fosse, tenho certeza de que eram aquelas mesmas culpadas pela renúncia de Jânio Quadros. Havia eu acabado de chegar da aula de balé quando presenciei toda a cena, no caminho até ali pensava na pergunta-joyceana-que-perguntava pela palavra que todos os homens conhecem. Qual era? Também me sentei em uma mesa de canto, fiquei ali cuidando dos meus pés que sangravam nas pontas, as unhas roxas de tanto battement glissé. Munida de gaze e mercuriocromo de fórmula antiga, aquela que fazia arder, me apercebia um tanto quanto masoquista, não soprava nunca, pra manter aquele ardor tão gos-to-so. Ele permanecia ali, concentrado, esvaziando a taça de vinho, e numa relação inversamente proporcional, enchia os guardanapos daquelas profecias todas. Percebeu enfim que dele eu não tirava os olhos, e lentamente se levantou. Com a boca roxa e seca e repuxando de tanino, veio andando em minha direção. Tomou-me o mercuriocromo das mãos e segurando com força o meu rosto, eu horrorizada, escreveu-me à testa: "para peixe que engole mar: demi-plié."

domingo, abril 22, 2007

como o último ímpar da espécie
cego e sem par
de calos nas mãos e nos pés
tateando uma hipótese
qualquer

sem dúvidas aquém
da pele
sem amarras depois
da verdade
sem palavras além
dos olhos

quarta-feira, abril 18, 2007

dolls

Até achei bonita a cena das bonecas que eu embalava no colo como duas filhinhas felizes e bem-comportadas, a mamãe está tão orgulhosa de vocês por não cometerem o erro-mór de transformarem células em tecidos, tecidos em órgãos e órgãos em sistemas! Mas elas puxavam o cabelo da mamãe-gente que era eu, metáfora boneca preta de pano. Sem querer arrancaram uma das minhas tranças de lã, numa dessas típicas brincadeiras anômicas de bonecas sem ethos nem castração. Preenchida por retalhos retorcidos pregas e pontos arbitrários, descosturada comecei a sangrar seda. Mamãe está se desfazendo oh filhinhas queridas! Minha pleura de cetim dói tanto e a mamãe não consegue respirar com essa fenda assim, tão às escâncaras! Uma nesga, uma agulha e linha dupla, s'il vous plait! As filhinhas não foram buscar, e estáticas ficaram olhando a mamãe com um sorriso dulcíssimo de bonecas desanimadas, os olhos abertos contemplando nada ah essas bonecas quanta dissimulação! A mamãe assim fica muito triste com vocês, eu assim tão indecente, exposta, se fosse peixe: em postas, mas como boneca, assim tão esgarçada! Mamãe desgraçada esgarçada desgraçada esgarçada não falem assim comigo! As bonecas que só respeitavam crianças, queriam que eu sangrasse renda até a morte essas bonecas traidoras queriam a mamãe enforcada com as minhas próprias veias de linha. Eu que não era mais criança, muito menos mamãe de bonecas, desde o início disse que não brincava mais com elas, e que gostava dos peixes, só dos peixes com aquelas anomalias categoriais, e só da metafísica daqueles corpos brancos se chocando, e só dos metacorpos que eram as palavras resvalando! Eu não volto mais pra dentro daquela casa de bonecas mudas, não te deixo me devolver à elas! Não deixo mais os meus cabelos serem puxados, desde sempre são elas que brincam com os humanos!

domingo, abril 15, 2007

para o oswald.


segunda-feira, abril 09, 2007

problema onto-cardio-lógico.

O gato imaginário que andava pelos cantos da casa com o olhar vesgo, e à noite dormia encolhido entre os joelhos da moça, era o que havia de mais verdadeiro nos seus dias. Ela chegava inclusive a ter alergia dos pêlos desse gato que não tinha. Noite passada, passou acordada tentando resgatá-lo do telhado em que estava preso, até que ele veio andando esguio pelo muro e num salto, entrou pela janela com uma asa de pássaro na boca. Era um gato-quimera, arranhando com doçura seu coração de vidro pintado, que estranhamente estalava. No entanto, a moça rezava firme, daquele jeito apertando os olhos, pra que um dia o gato nascesse da sua costela. É que existindo seria ainda mais pleno, ainda que não tão Belo como quando não-era, mas ela até se lembrou que gostava mesmo das imperfeições, e das arestas do que é, existe e tem. Ela queria que os outros vissem sua roupa suja de pêlos, ela queria o gato ali, ronronando e saltando não só pra ela. Queria a certeza de que não era delírio.

terça-feira, abril 03, 2007

a esquina

Costumavam frequentar a velha cafeteria após o expediente de oito horas diárias cumpridas numa repartição do arquivo público da cidade; era localizada na terceira rua à esquerda de quem sai, logo após a subida de quem desce de bicicleta e segue reto.

Às dezoito horas, pontualmente, batiam o cartão de ponto num aparelho analógico que registrava com quatorze minutos adiantados a saída dos empregados. Era o patrão inanimado, essa obsoleta máquina ranzinza e mentirosa, barulhenta como a tosse seca de um fumante rouco e enfisematoso. Nenhum técnico seria capaz de curar a doença da máquina, era um problema crônico no seu relógio biomecânico, faziam categoricamente o diagnóstico, os especialistas de uniforme azul.

Aqueles mesmos, os frequentadores da cafeteria, eram dois. Inspiravam de olhos fechados - como quem quer manter a calma - e expiravam de olhos abertos - como quem tenta & não consegue - liberando no ar parado todo aquele saco cheio de gás carbônico acumulado nos pulmões, sacrossantamente após o escândalo de despedida do patrão. Depois de pegarem cada qual os seus pertences, saíam um ao lado do outro, acompanhando com o olhar os próprios sapatos já descorados pelo tempo, e dedicando aos ouvidos atentos os tac toc tac toc que as solas faziam, barulhando alto no chão do corredor.

Porta afora, andavam em direção à cafeteria, assoviando baixinho, sambinha em caixa de fósforo, as cabeças representando a figura do cigarro que seria fumado quando se sentassem e pedissem o espresso com creme, os objetos sagrados da liturgia, e que por isso mesmo deveriam ser sacrificados, consumidos imediatamente para que se revelassem. Fulguração. "Essa coisa-em-mim...", resmungou um. "Ahn?", ensaiou o outro.

Passaram enfim pela bicicleta, ufas baixinhos foram proclamados - eles que já manifestavam em suas faces o medo de que a bicicleta não seguisse reto, obrigando-os a dar meia-volta-volta-e-meia-vamos-dar-para-casa, o que para desgosto comum vinha acontecendo com uma certa freqüência. Sentaram-se um em frente ao outro, e na mesa de sempre, solicitaram o garçom calvo. O cardápio. O cinzeiro. O isqueiro. Dois espressos com creme. Fumaças liberadas no mesmo instante, duas semi-retas paralelas seguindo direções contrárias, rarefazendo-se no ar. Sorriam um sorriso amarelo, não por pudor ou desconforto, mas simplesmente pelo tártaro negligenciado e impregnado nos dentes.

Batiam ansiosamente os pés, marcando o tempo de alguma canção, enquanto esperavam a música ao vivo que a cafeteria oferecia sempre naquele dia da semana. Dessa vez era especial a atração, música ao vivo sem banda nem intérprete, estavam curiosíssimos, e olhavam de soslaio os instrumentos sendo cuidadosamente dispostos no palco por um homem sério de calças curtas e colete verde.

Passada uma hora, levantaram-se e aplaudiram energicamente, as palmas e os assovios em direção ao espaço vazio de gente. Pagaram a conta em várias moedas, e saíram discutindo como nunca haviam feito, fizeram inclusive uma perigosa aposta: onde fazia mais silêncio: no Nichts dos alemães, ou no nada dos mortais? Pararam como sempre na esquina, à espera da velha senhora de bengala que lhes concederia passagem, como condição. Os dois permaneceram ali sem quando, querelando & querelando, sem saber que a velha já havia passado pra morrer logo ali, na segunda rua à esquerda de quem entra fundo & sobe reto sem querer.