Costumavam frequentar a velha cafeteria após o expediente de oito horas diárias cumpridas numa repartição do arquivo público da cidade; era localizada na terceira rua à esquerda de quem sai, logo após a subida de quem desce de bicicleta e segue reto.
Às dezoito horas, pontualmente, batiam o cartão de ponto num aparelho analógico que registrava com quatorze minutos adiantados a saída dos empregados. Era o patrão inanimado, essa obsoleta máquina ranzinza e mentirosa, barulhenta como a tosse seca de um fumante rouco e enfisematoso. Nenhum técnico seria capaz de curar a doença da máquina, era um problema crônico no seu relógio biomecânico, faziam categoricamente o diagnóstico, os especialistas de uniforme azul.
Aqueles mesmos, os frequentadores da cafeteria, eram dois. Inspiravam de olhos fechados - como quem quer manter a calma - e expiravam de olhos abertos - como quem tenta & não consegue - liberando no ar parado todo aquele saco cheio de gás carbônico acumulado nos pulmões, sacrossantamente após o escândalo de despedida do patrão. Depois de pegarem cada qual os seus pertences, saíam um ao lado do outro, acompanhando com o olhar os próprios sapatos já descorados pelo tempo, e dedicando aos ouvidos atentos os tac toc tac toc que as solas faziam, barulhando alto no chão do corredor.
Porta afora, andavam em direção à cafeteria, assoviando baixinho, sambinha em caixa de fósforo, as cabeças representando a figura do cigarro que seria fumado quando se sentassem e pedissem o espresso com creme, os objetos sagrados da liturgia, e que por isso mesmo deveriam ser sacrificados, consumidos imediatamente para que se revelassem. Fulguração. "Essa coisa-em-mim...", resmungou um. "Ahn?", ensaiou o outro.
Passaram enfim pela bicicleta, ufas baixinhos foram proclamados - eles que já manifestavam em suas faces o medo de que a bicicleta não seguisse reto, obrigando-os a dar meia-volta-volta-e-meia-vamos-dar-para-casa, o que para desgosto comum vinha acontecendo com uma certa freqüência. Sentaram-se um em frente ao outro, e na mesa de sempre, solicitaram o garçom calvo. O cardápio. O cinzeiro. O isqueiro. Dois espressos com creme. Fumaças liberadas no mesmo instante, duas semi-retas paralelas seguindo direções contrárias, rarefazendo-se no ar. Sorriam um sorriso amarelo, não por pudor ou desconforto, mas simplesmente pelo tártaro negligenciado e impregnado nos dentes.
Batiam ansiosamente os pés, marcando o tempo de alguma canção, enquanto esperavam a música ao vivo que a cafeteria oferecia sempre naquele dia da semana. Dessa vez era especial a atração, música ao vivo sem banda nem intérprete, estavam curiosíssimos, e olhavam de soslaio os instrumentos sendo cuidadosamente dispostos no palco por um homem sério de calças curtas e colete verde.
Passada uma hora, levantaram-se e aplaudiram energicamente, as palmas e os assovios em direção ao espaço vazio de gente. Pagaram a conta em várias moedas, e saíram discutindo como nunca haviam feito, fizeram inclusive uma perigosa aposta: onde fazia mais silêncio: no Nichts dos alemães, ou no nada dos mortais? Pararam como sempre na esquina, à espera da velha senhora de bengala que lhes concederia passagem, como condição. Os dois permaneceram ali sem quando, querelando & querelando, sem saber que a velha já havia passado pra morrer logo ali, na segunda rua à esquerda de quem entra fundo & sobe reto sem querer.