------- a coisa-em-mim -------

desaforismos. fábulas sem moral. egotrips. brainstorms.

quarta-feira, maio 30, 2007

caí no poço! - quem te tira?

diálogo de ruptura:

- Não é tanto que já não saibamos
- Sim, sobretudo isso, não encontrar
- Mas talvez o tenhamos buscado desde o dia em que
- Talvez não, e apesar disso cada manhã que
- Puro engano, chega o momento em que a gente se olha como
- Quem sabe, eu ainda
- Não basta só querer, se além do mais não se tem a prova de
- Está vendo, de nada vale essa segurança que
- Certo, agora cada um exige uma evidência frente a
- Como se beijar fosse assinar um atestado, como se olhar ...

Cortázar, in Um tal Lucas

daqui
...

E pra ela:

Sabe, querida, essa história de Godot não passa mesmo de leréia dos que buscam redenção. Leréia da humanidade inteira, minha & sua & deles. Esperar Godot é estar na ponta de uma reta assíntota: tender à, sem nunca chegar. É o barco que eternamente anda & anda & anda até a linha do horizonte, que no entanto recua & recua & recua. Eu já havia escrito na carteira da escola uma vez, assim: matar Godot é como matar a espinha dorsal do desejo, é como arrebatar o coração do mundo. Como isso soa apocalíptico, não é? E ao mesmo tempo absurdo: ele que não existe é condição de nós mesmos aqui, continuando a nos mover como formigas. Ele que não existe me faz mover em direção à ele, que no entanto, não está em lugar algum. Mais absurdo ainda é não podermos matar o que não existe, não pelo fato de não existir, mas pelo fato de que se o matarmos, somos NÓS quem deixamos de ser. Forjamos esse tal Godot, mas na verdade é sem objeto a nossa busca, porque sabemos, ainda que não queiramos saber, que nada nos salva, no máximo nos fortalece pra suportar de pé a próxima queda e a mudança dos ventos. Que seja Messias, que seja Godot, um horizonte adentrável, o juízo final, ou o fim da história, é duríssimo dizer, mas se encontrados, são heterônimos da morte, seja ela matada ou morrida. E aqui somos sujeitos da errância sem objeto, sem fim que não seja nada além de ir em direção à direção da direção à direção da direção, e assim saltando os galhos, os corpos em decomposição, saltando as próprias pernas que às vezes vacilam. O paraíso se perdeu há tanto, querida, que é necessário superar a nostalgia, mesmo se sentindo o caroço da maçã cuspido pelas bestas que devoraram o resto antes da queda. Qualquer objeto que elegermos será falso, quimera apaziguadora e só, no entanto tão necessária como a água. Ah querida, já deveríamos ver com olhos de quem sabe muito bem, que Essa própria coisa procurada, é o que nutre o nosso passo, e o que enfraquece por não ter.

terça-feira, maio 29, 2007

notas.

Lá fora era forte o sol, e a paisagem acompanhava os humores dos passantes, era desértica. E ainda fora dessa paisagem descrita, como um homem pintado fora da moldura, ou um rio que deságua fora da tela, estava erguida uma casa de paredes de pedra, uma casa.
.
Do lado de quem vê, o homem toca lá dentro da casa de paredes de pedra. Mas do lado de quem ouve, o homem ultrapassa o dentro e o fora, anula-se. O agudo do violino que matava o homem que tocava, quebrava também os espelhos dos vaidosos, fazia vibrar a ferida ardida no canto das unhas das mulheres, transformando toda dor grave num canto desnecessário. A mulher prepara o café na cozinha e queima as mãos, impassível, procura o açúcar. Como na infância, adoça a ferida fina do canto das suas unhas, e em seguida leva o dedo à boca, molhando-o de saliva. Misturam-se a carne, a saliva, a criança, o açúcar, os agudos. A mulher ensaia um sorriso, com olhos nostálgicos de névoa olha a janela. O homem agora toca sua nuca e ombros. Ela perde a gravidade, trêmula desce ao inferno telúrico de sua última oitava.

domingo, maio 27, 2007

avó.


E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de açucena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.

Hilda Hilst
(Alcoólicas - IV)

segunda-feira, maio 21, 2007

Era uma vez uma senhorita que achava que não ia aprender nada com tudo o que acontecia, e acabou aprendendo tudo do nada. Tudo muda, não é mesmo? "mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança; todo o Mundo é composto de mudança", e não é que a senhorita conhecia sim alguns versos de Camões de cor! Ah, mas mudam-se as datas, mudam-se as perversões, e as minhas e tuas - ébrias ou não - essas não mudam não não. O sadismo é o mesmo na senhorita ou em Sade, o gosto de sêmen é igual não importa a geografia ou religião. "Que dialética monstruosa!", pensava a senhorita, que não escondia as palavras que não diziam nada senão a vertigem. Vamos nos conhecer melhor, sim? Mas não se esqueça de antes assinar aqui, assim um pouco mais embaixo. Não! Não entenda errado, eu sou um fruto anômalo mesmo, acostumada às folhas que no outono caem sobre o chão. Resignei-me.
Mas na manhã seguinte os olhos da senhorita se puseram tristes como nem pedra nem neve puderam ser tão tristes assim. Fora do mundo e fora das guias, onde estava a senhorita, o prazer é triste um segundo após o gôzo. O desastre ainda corre atrás da senhorita, ela bem sabe. O desastre quer agarrar um braço da senhorita. Um braço e seu grito mudo por dias a fio. E uma mão obscura revolvia, e revolvia e revolvia:
tripas
entranhas
estômago
revolvia tripas entranhas e estômago. Mãos impregnadas por um cheiro que pode ser frio mesmo, mas não, é medo da senhorita. A senhorita tinha medo da senhorita. Um verso satânico, ainda que não haja não haja nada não haja Satã. A senhorita ensaiava cheia de galicismos o dia em que se precipitaria no néant dos franceses, antes que o vento profetizasse alguma glória ou tempestade. Mas a senhorita precisava mesmo de
um verso branco como quem cura o próprio corpo
supura a ferida funda do próprio corpo
costura a veia frágil do próprio corpo
queria uma canção que não terminasse. fogo e música, um amálgama de inferno e paraíso antes da queda e da onerosa... maçã! era uma maçã! mas só uma maçã?
que história patética é essa?
um silogismo de corpos fundidos em notas na pele tão imperfeita de tão humana e ferida gangrenando toda a maledicência. os sorrisos que ela desejava não precisavam de argumentos, a pele não precisa de argumentos para sentir o calafrio ay ay ah que sobe pela espinha e põe a boca doce como frutas maduras. as línguas de lobos que pintavam estepes no ventre da senhorita não tinham filosofias, e a senhorita pensou que as filosofias que lhe meteram doeram e sangraram mais do que outras coisas que meteram nela que, aliás, não doeram nem sangraram coisa alguma. tinha um par de asas para o vôo, porém quando exilada no chão, as asas não queriam deixar que ela andasse. "mas que dialética curiosa!" pensou de novo a senhorita. a senhorita pensou:
no caos
na queda
no éter
no vácuo
no não o não de tudo
o não do nada que é o não absoluto
no frio que deveria ser no nada,
e também no absoluto que na verdade não era nada.
a senhorita pensou no nada a senhorita não aguentava mais o gosto do nada nada nada que lhe traziam as horas. não aguentava mais o gosto do nada de monstro monstruoso monstro que a espelhara e a presenteara com o espelho amorfo da razão que fugia, fugia, fugia, e fugia...
o gosto do nada.
eu não suporto mais
esse gosto de nada

domingo, maio 20, 2007

I thought it was a bird, but it was just a paper bag.

ontem plantei uma gérbera,
extirpei um câncer
dei de comer às indigências
(na palma das mãos)
e suscitei um problema pra minha coleção.
hoje eu sou prosaica feito uma cumadre
sem afilhado
sem marido vivo ou falecido
boba, banal e sem asas
numa fotografia fora de foco.
ingênua:
com um mundo dentro de outro mundo
onde não há a possiblidade de outros mundos possíveis.
portanto estou indo ralo abaixo no meu próprio ralo
em processo autofágico.
mas amanhã,
ah!
amanhã, eu aprendo a lição
e serei então um espelho inteiro e plano
sem distorções
(com sentido e referência)
sem arestas ---
sem o fundo torpe dessa mesma música de anos,
sem os gritos e ruídos dessa indeterminação atonal.

domingo, maio 13, 2007

hebdomática ou take a walk on the wild side II

No meio do caminho da vida reta tinha sete bueiros.

hebdomático.

CRISTAL
.
Não procura nos meus lábios tua boca,
não diante da porta o forasteiro,
não no olho a lágrima.
.
Sete noites acima caminha o vermelho ao vermelho,
sete corações abaixo bate a mão à porta,
sete rosas mais tarde rumoreja a fonte.

Paul Celan

quarta-feira, maio 09, 2007

redenção sui generis

- Precisa de Deus! - receitavam os metafísicos.
- Precisa da autoridade paterna! - receitavam as vizinhas.
- Precisa de um marido! - receitavam os oportunistas.
- Precisa de um superego novo! - receitavam os estudantes de psicologia do primeiro período.

Após ouvir pacientemente todas as recomendações, ensaiou um
scat singing, e em si mesma fez lobotomia com as próprias mãos.

terça-feira, maio 08, 2007

parábola.

Há muitos e muitos anos, como de costume, Maria foi dormir transcendental, e como que por milagre, certo dia acordou empírica. Não sabendo quanto tempo duraria a farra de se ver liberta dos grilhões de sua própria subjetividade, como uma mulher sem classe nem categoria, tratou logo de encontrar-se com José, que por bom comportamento na estória em que era narrado, acabara de ser promovido de sujeito proposicional, a sujeito histórico-cultural. Enquanto gozavam livres, lépidos e faceiros da (e na) sua tão sonhada imanência, antes mesmo do cigarro pós-coito, aconteceu como de praxe, o pior:
Maria foi presa e acusada de cometer realismo ingênuo, crime inafiançável após o decreto de 1781. José enlouquecido pela perda de Maria, cindido e desenraízado da história em que acabara de ser admitido, foi imediatamente internado, o diagnóstico era a própria crise do sujeito, epidemia que se alastraria fatal e incurável ao longo daqueles
tempos modernos.

segunda-feira, maio 07, 2007

diáfana

Ambiesquerda, sinistra completa, canhota das duas mãos, eu aceito o que é congênito. A crítica sem a clínica. Mas o desequilíbrio verbal se trata embaixo da água, ando doente do verbo que me queima ácido a garganta. Transformei palavra em arma de fogo, confesso. Narciso então se afoga e passa a se contemplar num pedaço de espelho dentro do lago. Os peixes aqui me dizem verdades calados. Dizem que a logorréia é o mutismo mais cômodo, são os discípulos de Kierkegaard. Me ensinam do silêncio que não é mudez, mas a nudez mais corajosa; quando as palavras não cabem nas coisas, quando as roupas se encolhem de susto e não vestimos um corpo à força e levianamente, pelo pudor do calar. Tento aprender com os peixes a impudicídia de não ter nota, a virtude da pausa que neles é eterna e sem peso. Aprendo música com os peixes porque aprendo a pausa. É a minha afasia deliberada. Então não pesca palavras de mim, agora não, deixa os peixes no meu aquário, aqui. Deixa a submerssão, o olho fechado. Não me exija, mas segue no meu encalço, o olho abre na água amanhã ou depois. Me deixa reaprender a dizer sem queimar. E só então eu cuspirei um peixe multicor.

sábado, maio 05, 2007

l'aube où se dénouent les étreintes est pareille à l'aube où meurent les révolutionnaires sans révolution
.
a aurora em que os abraços se soltam é semelhante à aurora em que morrem os revolucionários sem revolução

daqui.

quinta-feira, maio 03, 2007

retorno dos crimes, das delicadezas (...)

guadalupe colou com saliva o sétimo selo numa sétima carta e não obteve respostas.
guadalupe está sentada em meu colo cativo. guadalupe está soprando as cinzas na janela. guadalupe quer a sorte e a resposta num só ato. guadalupe quer respostas. guadalupe está puxando meus cabelos exigindo-me respostas. está a arrancar meus cílios um-por-um, mordendo-me os pulsos, tecendo uma rede de maltratos. guadalupe diz que sim, diz que não, não diz nada. me olha com seus olhos moles, seus olhos de peixe e me fura com seus espinhos. guadalupe me obriga a engolir seus espinhos e me rasga o esôfago. guadalupe faz carinhos e diz que nunca mais me morde. guadalupe é mentirosa. guadalupe se esconde por entre meus cabelos e canta fados portugueses desafinadamente. guadalupe é meu fardo, o meu engano. guadalupe é simultânea, antes fosse antinomia. guadalupe em nada crê, é piromaníaca, cospe fogo em qualquer contrato de confiança com o mundo. guadalupe cospe fogo nos meus pés porque não quer que eu toque o chão. guadalupe é randômica, desnecessária. guadalupe desafia a necessidade. guadalupe é relativa, reativa. radioativa. guadalupe é uma mendiga, pisa com os pés sujos sobre os seus próprios passos. guadalupe anda em círculos e não enxerga o centro. guadalupe é vesga, cada olho seu toca um ponto inverso no universo. guadalupe tentou andar de salto e virou o pé. guadalupe é manca. vejam! guadalupe é manca e vesga. guadalupe é pobre também, perdeu tudo numa partida de xadrêz com a terra. guadalupe vendeu as roupas, as palavras, a bola, os brinquedos. guadalupe arrasta uma boneca pelos cabelos. guadalupe não desgruda da boneca e dorme com ela embaixo da cama do mundo. guadalupe tem uma boneca que não fecha os olhos. guadalupe só tem a mim.