------- a coisa-em-mim -------

desaforismos. fábulas sem moral. egotrips. brainstorms.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

crimeecastigo

de dentro da minha cela eu posso ver os homens e as mulheres passando. eles passam geralmente com suas grandes cartolas negras cheias de segredos - não tão inocentes quanto coelhos - e com a sua terceira perna de madeira chamada bengala, o bordão dos homens modernos. eu tenho um cajado antigo, aqui na minha cela, que me ajuda a desfazer as teias de aranha forjadas nas quinas das paredes. mas eu não mato as minhas pequenas aranhas, que já são muitas por aqui, eu as tenho como inspiração, modelo exemplar de sobrevivência. bordar, tecer, entrelaçar, enredar - é o que me resta em minha cela quadrada e vazia. eu que teço com outra espécie de fios, tenho fios de cor que trouxe comigo dentro da boca sem que eles percebessem. mas oh sim, as mulheres? as mulheres passam por aqui silenciosas, com as cabeças cobertas por véus negros de renda e filó, negras como as minhas aranhas, como viúvas negras, mas sempre com os olhos grudados nos pés, os pés cobertos por sapatos de salto que sempre perseguindo o chão, parecem querer algo que está muito além dele - do chão, parecem querer saltar e correr pra bem longe, mas oh essas mulheres não podem. vestidas com seus vestidos longos e rodados, cheios de anáguas que outrora já desprezei e praguejei, mas hoje invejo e desejo-as simplesmente como cobertor, simplesmente pra me aquecer. é que na minha cela eu tenho somente os meus cabelos pra me esquentar, estes que estão quase na cintura, esquentam-me as pernas somente se eu me encolher, o que me provoca dores agudas pelo corpo. meu corpo já moldado pela cela, mas que não molda nunca minha prece, minha prece que é meu próprio espírito. aqui na cela eu preciso ser duas, romper a unidade pela esquizofrenia. por sobrevivência eu preciso acreditar que eles tem somente o meu corpo, e jamais me terão inteira, oh meus pensamentos e minhas preces ultrapassam a cela, eu preciso acreditar. cabelos brancos começaram a crescer em minha cabeça, "é a cor do tempo dos animais", meu avô dizia com aqueles cabelos de algodão-doce, já com a boca desdentada, sentindo-se um velho cão, já com a visão turva, mas ainda mantendo a dignidade no passo, o passo de quem roeu muito osso, de quem buscou no fundo das latas viradas um pouco de verdade e só encontrou plástico. sabe que daqui da minha cela eu também vejo os animais, vejo os gatos que passam se bastando, acreditando ser seu próprio rabo uma serpente, o rabo do gato que é seu ponto de equilíbrio, que sempre está pra lá pra cá pra lá, em movimento circular o rabo do gato. um dia um gato parou em frente a minha cela justo no momento em que eu me banhava de choro, aqui eu não tenho água, e é assim que eu me banho, um choro que não necessariamente é efeito de causas dolorosas, é só a água que escorre pelos olhos e pronto. foi quando ele começou a se banhar também, a se lamber num gesto de identificação, como se fôssemos da mesma espécie. é que ele não reparou nos meus olhos caninos de súplica, nem nos meus pensamentos assustadoramente humanos. daqui da minha cela eu também vejo um jardim de magnólias, mas aqueles mesmos homens e aquelas mesmas mulheres pisam sem nem saber que são, os véus das mulheres fazem-nas pensar que são pedras, os óculos dos homens, que é puro cascalho. eu grito mas eles não me ouvem, ninguém me ouve aqui da cela depois do meu crime cometido quando jovem, jamais me perdoariam, depois que eu pus fogo naquelas malditas anáguas e desprezei seus véus.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

COMO TE EXTINGUES em mim:

ainda no último
e gasto
nó de ar
estás lá com uma
faísca
de vida.


Paul Celan

terça-feira, fevereiro 06, 2007

desmundo

foram embora as pessoas e as coisas todas e ficou tudo branco tipo limbo. ficou tudo limpo asséptico, ficou tudo imenso. ficou simples sem as gentes, ficou só espaço. só silêncio, um torpor intenso no fundo do claro. ficou a seta perdida, sem norte, na névoa, na noite fria. ficou só um ponto, sem outro, sem reta nem ponte, sem guia. as pessoas extintas todas sem vestígios, não deixaram restos nem pistas pra onde. ficou o cômodo alvo e ela lá adiante. com os olhos no teto branco da terra que escondia a sorte. com o corpo tonto se debatendo contra a sina da morte. ficaram os movimentos, o corpo rangendo como se fosse nada. sobrevivente ao gelo, cansada faminta desorientada. era o único olho no mundo,
um ente na neve, seu nome --- espécime:
.
.
.
barata.

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

efemérides II

o tempo fechou a porta:
na cara do moço
que vive sem hora
livre de cismar
sobre as coisas
todas paradas diante de si.
sem tempo seu corpo
não corre
ele não pensa
nem morre
é o moço pra sempre
idêntico
o moço sem tempo
é sem morte.
eu não quero ser o moço
sem a folha que cai,
a fogueira que não
transfigura,
na eternidade que é
tão triste
feito um ovo vazio,
sem pássaro.

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

criando rugas,
marcas
cascas
carapaças
.
.
.
a própria
cova.