------- a coisa-em-mim -------

desaforismos. fábulas sem moral. egotrips. brainstorms.

domingo, dezembro 24, 2006

Natal.

Maria chegou até a parir. Aquele barrigão convexo que cultivou durante 8 meses e 7 dias finalmente o expulsaria, num desejo côncavo de se esvaziar daquele ser. Durante o trabalho de parto era a sua força muscular e a cabeça girando pelo alívio de se curar daquela esquizofrenia que é a gravidez. "Toda grávida é uma esquizofrenica" - pensou Maria. E no rir de sua própria piada é que foi feita a última força necessária para depor o seu duplo. Branco e liso feito borracha, de olhinhos fechados e mole feito um boneco, o serzinho sem choro: natimorto. Coitada de Maria - se a luz era a cura que restabeleceria a unidade de si mesma, devolvendo-a à solidão originária de tudo o que é um, foi também o veneno que ofuscou mortal a vida daquele outro que vinha dela mas que não a era, morreu sozinho o coitadinho, aquele recém unzinho. Deveria ter ficado pra sempre naquela barriga, como um alimento perecível numa lata de conserva. Toda barriga de fêmea contém conservantes, e se destampada tudo o que nela é orgânico mais cedo ou mais tarde se degenera ["é que a gente já nasce morrendo", eu sei que vocês não esqueceriam o paradoxo mais íntimo, espertinhos!]. O outrozinho de Maria conseguiu a proeza de unir vida e morte no mesmo instante, aquele serzinho sem lógica desfez a velha antinomia. Maria enlouqueceu, praguejando o seu próprio útero, que dizia ser semente podre, coitadinha. Passou a querer todas as luzes apagadas, a escuridão dos que não vêm à vida. Maria virou madrinha de aborto, e como a protagonista de alguma piada cósmica, ironicamente depois de anos exercendo a sua missão, acabou por morrer afogada em leite materno.

sexta-feira, dezembro 22, 2006


Reconciliação.

eu gosto mesmo é das omoplatas, sim as nossas asas cortadas que transparecem ainda mais nas costas das pessoas magras. aqueles ossos que sobram como restos bonitos quando você se deita com os braços esticados. as omoplatas são fáceis como a água e não menos belas que as coisas mais difíceis desse mundo. as coisas difíceis também cansam. as coisas belas não podem e não devem ser tão/somente difíceis assim. eu quero água - a simplicidade e a verdade fácil de uma mão em forma de concha que se oferece pra matar a sede de alguém. a beleza do que é vivo e é molhado por ser palpável - tudo o que pode ser tocado. a beleza do que cabe em si e cabe no outro por ser flexível e aberto [ah como é necessário me infiltrar nos outros pra não secar em mim!]. os olhos que se abrem como um botão floral, é preciso querer ser afetado e afetar - não mais se exilar pensando no que antecede as omoplatas, o osso agora enfeita a entrada da minha casa orgânica --- como antes, quando tudo era mais vivo em mim.

quinta-feira, dezembro 21, 2006

terra.

e se a porteira está mesmo tão aberta e a estrada é assim tão longa e direta até o abismo porque não sai e não corre e não vai logo porque não dar o salto ou porque não chutar logo a pedra no meio do caminho e porque não dar logo o tiro no espantalho que é o embuste a falsidade e porque não dar crédito aos que dizem porque não? porque calçar sapatos fechados e esperar que o tempo abra e adiar para a segunda ou começar só em janeiro e esperar o décimo terceiro projetar o tempo feliz que em mente é sempre o auge e por isso o derradeiro? porque se agarrar à porteira porque a porteira é a única certeza porque é onde se está e não onde se quer chegar e onde se quer chegar nem sempre é o lugar onde os pés já repousam autônomos cansados, recusando-se a caminhar. e os que caminham em volta das praças dando 10 15 20 voltas no sentido horário as roupas de ginástica apertadas o cachorro ofegante são os velhos dando a volta ao mundo que tem como centro um pequeno coreto onde eles querem chegar? acho estúpido como acho estúpida a [minha, sua] mente obsessiva com caminhos e com o tempo e com destino e com chegada e que não presta atenção no maldito percurso no processo que é o único reduto a única morada para de querer finalidade para de buscar sentido para de querer descanso para de desejo de nada e pega a bicicleta o pé descalço e mesmo pendurada de medo na porteira que é o seu ponto preciso no espaço tenta traçar um mapa absurdo um jogo da amarelinha vira o pé corta e sangra os tornozelos e sente a dor sente que é humana e que é mesmo assim e pronto e é feliz simplesmente porque é vermelho.

domingo, dezembro 03, 2006

dissabor.



eu não tenho estômago pro mundo

as coisas que vejo

[por aí.]

aqui esses frutos podres

[os nossos restos]

que eles comem macerados sem escolha.

sábado, dezembro 02, 2006

confesso.

eu não quero mais a paciência com a idiotia do café descafeinado com o gosto amargo aquele café ralo aquela raiva contida em mim que me olha nos bons modos dietéticos sugar free, eu não quero. nem mais amor com esses adjetivos grandes essas palavras opressoras : econômico burocrático racionalizado previamente divido embalado pra viagem nem a parte que me cabe porque eu quero que me doa por ser grande e que me sobre, e não a sobra, corazón.

sexta-feira, dezembro 01, 2006

marmarmarmarmarmarma.

A língua de fogo em brasa que eu tinha se esfriou na água em que todos os peixes foram pescados - meu anzol jaz há dias na franja do mar, à espera - mas todos os peixes foram pescados. Por isso pesco meias perdidas sem par, garrafas de plástico com bilhetes ilegíveis de molhados, pedaços de pano esgarçados que nunca hão de secar. Todos os peixes foram pescados para que virassem pedra, eu só queria um, que fosse flor ou veludo, uma mão aberta, um canto de galo na solidão - eu que não pesquei nenhum. Daí mergulho fundo e abro os olhos lá dentro, que queimam no sal que também curam as feridas da navalha afiada que há em mim, dentro da pele. E choro dentro da água pra que ninguém veja e nem eu mesma veja pois menina, a água salgada não é mérito só seu, e então a água salgada entra na água salgada e é como se não houvesse choro meu. o mar é o choro da terra que não significa dor, mas significa ele mesmo mar. O movimento das marés que perigam porque avançam demais ou porque se recolhem demais é a tensão da terra com a lua, e vai que um dia a lua ganha e rouba o mar da terra e você vai nadando com as ondas até em cima, vendo os barcos e as âncoras abandonados lá embaixo porque são pesados demais pra subir. e vai que algum peixe você consegue guardar nas mãos. e vai que. Eu colei com água-viva as mãos numa canoa e fui. estou no ir --- sem baleia* pra me redimir e me fazer voltar.

*aquela do Jonas.